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Desperdício alimentar: o nosso calcanhar de Aquiles está em casa

Em Portugal o problema do desperdício não reside tanto na agricultura, na pesca ou na produção mas está principalmente na distribuição, na restauração e nas famílias.




Faço parte de uma geração que cresceu a ouvir que é feio não comer tudo o que está no prato porque existem crianças a morrer à fome. Lembro-me de numa fase em que era mais pequena, não entender bem a lógica daquela afirmação. “Se existem crianças a morrer à fome, porque é que me põem tanta comida no prato e não lhes põem a elas? E que culpa é que eu tenho que existam crianças a morrer à fome?”


À medida que fui crescendo, fui entendendo que a lógica por trás da afirmação recorrente dos meus pais, era a da gratidão. Era a mesma lógica dos brinquedos; as crianças querem sempre mais qualquer coisa mesmo quando têm o quarto cheio de brinquedos (Se fossem só as crianças...).


É feio não sermos gratos por tudo o que temos e a gratidão também passa por saber receber. Seja receber a camisola feia que uma tia nos oferecia no Natal, ou a sopa de cebola que de vez em quando me punham à frente. O que só fui percebendo mais tarde, foi que a questão da comida no prato era um bocadinho mais complexa e ia bastante além da gratidão.


No meu último ano de mestrado em Londres, em que vivia a contar os tostões que não tinha na carteira, vivi com uma senhora que me marcou para sempre, a Alice (nome fictício), uma holandesa sobrevivente de um campo de concentração japonês. A Alice era uma enfermeira da Cruz Vermelha reformada, não vivia com grandes luxos mas vivia bem, apaixonada pela programação cultural que Londres oferecia para a terceira idade e com a maior atenção ao desperdício alimentar.


A Alice, embora já não lhe faltasse nada, todos os dias, em todas as refeições, lambia o prato que tinha acabado de comer. Um dia perguntei-lhe porque o fazia, uma vez que não combinava com todas as boas maneiras que tinha, e ela lá me contou a história da vida dela e dos quatro anos que viveu em criança, com a irmã, no campo de concentração, sem nunca saber se aquela seria a sua última refeição. Foi a última vez que deixei comida no prato.


Hoje, sou mãe de dois rapazes, tenho uma casa e escolas para pagar e uma preocupação crescente no que toca ao planeta em que os meus filhos — e os filhos dos outros — crescem e vão viver. E o que é que isto tem a ver com a comida que se deixa no prato? Tudo.


Em pleno ano de 2023, o cidadão português perde em média 28€ mensais com o seu desperdício alimentar. Cá em casa somos quatro, ou seja, vão 112€ para o lixo todos os meses, 1344€ a cada ano. Mas, calma, que a preocupação aqui parece estar na minha carteira e não nas crianças que continuam a morrer à fome ou no futuro do planeta. Também, mas não só.


O que acontece é que neste momento, um terço da comida que se produz acaba no lixo. Portugal é, enquanto escrevo, o 4.º país da União Europeia que mais comida desperdiça por pessoa. “É a minha carteira, o problema é meu.” Errado. O problema é de todos, ou melhor, é para todos.


Vamos analisar a nível macro para nos entendermos melhor. A Boston Consulting Group (BCG) estima no seu estudo “Closing The Food Waste Gap” que no ano de 2030 (daqui a sete anos) se irão perder 1,5 mil milhões de dólares em comida desperdiçada. Explicam que isto significa que se o desperdício alimentar fosse um país, estaria entre os 7% mais ricos pelo seu PIB e seria o 3.º maior emissor dos gases que contribuem para o efeito de estufa (logo a seguir à China e aos Estados Unidos).


Se pensar na carteira não resultar para todos, vamos tentar pensar por aqui então: “É o meu planeta, o problema sou eu.” Sou, enquanto desperdiço alimentos, responsável por parte dos 4,4 milhões de toneladas de CO2 por ano que se podiam economizar se não houvesse desperdício; sou responsável por 25% da água doce do mundo que é utilizada para cultivar alimentos que nunca vão ser consumidos, e sou, em última análise responsável pela má distribuição que continua a deixar 870 milhões de pessoas com fome e o resto do mundo com pratos por acabar.


É que enquanto continuamos a passar a mensagem que precisamos desta quantidade de alimentos, continuam a produzir e a fazer-nos chegar esta quantidade de alimentos (maravilhas de 1.º mundo). É preciso pôr o pé no travão e mostrar que afinal não precisamos de assim tanto. Em Portugal o problema do desperdício não reside tanto na agricultura, na pesca ou na produção mas está principalmente na distribuição, na restauração e nas famílias. No caso da distribuição e da restauração, as regras de apresentação e de saúde, como é o caso dos prazos de validade, são demasiado intransigentes; a temperatura dos locais de venda nem sempre é controlada como devia ser; e a verdade é que ainda existe muita negligência.


No entanto, o nosso calcanhar de Aquiles está em casa. Em Portugal, as famílias são as que levam a maior fatia da responsabilidade por tanto desperdício.


Ao escrever, o meu objetivo não é a abrir uma competição de culpas, mas uma janela de responsabilidades. Este é um dos problemas que só conseguimos resolver, se cada um e cada vez mais pessoas tiverem consciência dele. Há muitos problemas globais em que nos sentimos impotentes, em que achamos que a nossa ação pouca ou nenhuma diferença pode fazer.


Raramente é o caso mas no desperdício, não é seguramente. Está aqui, entregue de bandeja, uma solução que faz efetivamente diferença. Se os meus filhos com 4 anos já me explicam que apanharam uma palhinha do chão para não ir parar à barriga do peixe que vão comer logo à noite, e se já me explicam que o planeta está doente por causa dos fumos, por isso é que está a chover no verão; então também têm capacidade de perceber que se fizermos um montinho com toda a comida que todos os meninos deixam no prato, vamos poluir ainda mais o planeta e destruir comida que podia ter sido aproveitada para alimentar aqueles meninos todos no dia a seguir.


|Fonte: Público, 29 de setembro 2023

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