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“Nem luxo, nem lixo”. Na Dona Ajuda, dar é um ato consciente contra a desigualdade e o desperdício

Um livro velho, um vestido usado e uma cesta de fruta feia entram no Mercado do Rato. Na loja da Dona Ajuda, ganham um novo ânimo — e um propósito social, ambiental, cultural. É a economia circular em funcionamento, por uma causa e com zero desperdício.



A Dona Ajuda, "loja social da boa vizinhança", é uma instituição particular de solidariedade social autossustentável, com um propósito social, ambiental e cultural, que aceita todo o tipo de doações para voltar a doar ou para vender com fins solidários. Foto: Rita Ansone.

O Mercado do Rato passa despercebido por estes dias. Espremido entre um stand de automóveis e um prédio em obras, uma rampa alcatroada, longa e inclinada, serve-lhe de entrada. Seria igual a qualquer outro pedaço da rua Alexandre Herculano, perto do Largo do Rato, não fosse o letreiro, bordado a ferro por cima das grades do portão, a identificar o lugar.


O ferro gasto conservou o nome do mercado histórico lisboeta, mas não a função. Dos residentes originais do Mercado do Rato, só dois restaurantes resistem — explicação para o cheiro a peixe grelhado que invade o ar à hora de almoço. Por cima das letras do portão, uma faixa esclarece a identidade da nova moradora: “Dona Ajuda – Loja social da boa vizinhança”, lê-se, numa letra simpática, acompanhada da cara sorridente de uma velhinha com óculos.

É a loja social que hoje ocupa a maior parte do espaço transformado, onde as bancas de carne, peixe e fruta deram lugar a montras de roupa em 2ª mão e filas bem organizadas dos mais variados objetos para vender a baixo custo. De um grupo de vizinhos envolvidos localmente até uma associação multifacetada gerida por voluntários, o projeto foi crescendo — e ocupando mais espaços vazios do velho mercado.



O Mercado do Rato é hoje em grande parte ocupado pela Dona Ajuda e associações parceiras, como a Pousio, a Fruta Feia ou a Re.Vira.Volta.

Foto: Rita Ansone


Hoje, a Dona Ajuda inclui uma associação cultural, a Pousio, que organiza eventos e cede espaços a artistas, uma parceria com a Fruta Feia, cooperativa de consumo contra o desperdício alimentar — e foi até, com o projeto Re.Vira.Volta, também ele virado para a promoção da economia circular, uma das vencedoras do Orçamento Participativo (OP) de Lisboa de 2021, cujos projetos eleitos começam agora a ser financiados e postos em prática.

Quem já conhece o “novo mercado” sabe que a visão da chegada, protagonizada pelo portão velho, é enganadora: aqui ainda há muita vida a pulsar. Para a encontrar, seguir-lhe o rasto e subir a rampa.



Educar para dar


A Dona Ajuda é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS) autossustentável, com um propósito social, ambiental e cultural. O trabalho começa com dar uma nova vida a objetos usados: roupas, livros, discos, artigos de decoração, brinquedos… aceitam-se todo o tipo de doações. Mas não termina aí.


“Nem luxo, nem lixo, é digno de dar o que é digno de usar”. A síntese, que aqui é lema, é feita por Rita Costa, uma das voluntárias que acompanha o projeto desde início. Como todos os voluntários presentes, usa um avental às riscas verdes e brancas, com o rostinho de desenho infantil da “Dona Ajuda” estampado na frente.


Na zona da loja social, que ocupa a primeira nave do mercado, hoje, são sobretudo mulheres. Fazem a triagem das doações, debruçadas, em conversa amena, sobre roupas e cabides espalhados nas bancadas centrais da peixaria, ou atendem os fregueses que vão entrando.



“Nem luxo, nem lixo, é digno de dar o que é digno de usar”. A síntese, lema na Dona Ajuda, é feita pela voluntária Rita Costa. Foto: Rita Ansone


“As pessoas têm muito pouca noção que dar é dar, não é despejar o lixo”, completa Rita. “Recebemos coisas em muito bom estado e coisas em muito mau estado” — e quase todas são, de uma forma ou outra, aproveitadas. Entre o riso e o desespero, relembra doações ridículas, e como importa educar para dar. “Uma vez recebemos um único sapato velho, sem par! Há coisas extraordinárias.”


Uma vez doado à Dona Ajuda, qual o destino de um objeto usado? Depende do que for, do estado de conservação e das necessidades das associações parceiras no momento. Atualmente, são 17 as IPSS de Lisboa com protocolos com a Dona Ajuda, desde a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) à Nasce e Renasce.



Ajuda em rede


Temos três níveis de triagem ao receber [uma doação]”, explica Rita. No primeiro nível, distingue-se o que é mesmo irrecuperável – ou seja, “lixo” – do que está em bom estado. Por isso, grande parte do trabalho “braçal” das equipas de voluntários, que operam em grupos, consoante os horários que têm disponíveis, é fazer a triagem das doações que chegam: averiguar o seu estado, manter tudo o que é doado organizado e encaminhar as doações para o respetivo rumo.


As doações que constituem uma necessidade urgente do momento (imagine-se, uma peça de mobília que falta ou um fato formal para uma primeira entrevista de emprego) são encaminhadas para pessoas individuais, previamente sinalizadas por uma instituição, ou para associações de solidariedade social de proximidade, como a Associação Reto à Esperança, de apoio a toxicodependentes, uma das várias associações parceiras da Dona Ajuda.



Roupas, livros, discos, artigos de decoração, brinquedos, tudo pode ganhar uma segunda vida na Dona Ajuda. Fotos: Rita Ansone


Por fim, num terceiro nível, artigos que não encontram um destino imediato são dispostos na loja social, para serem vendidos a preços baixos, a qualquer pessoa que os queira comprar.

O efeito, do princípio ao fim, é de uma rede entrelaçada. “Existe um contacto permanente e uma troca entre nós [e as associações]”, esclarece Teresa Cancela, atual presidente da Dona Ajuda, que acompanha desde os primeiros passos. “As famílias ou pessoas individuais que chegam até nós [nessa primeira etapa] para apoio vêm com uma carta de referência de uma instituição e aqui fazemos uma ficha de beneficiário.”


A pandemia fez aumentar as carências e na Dona Ajuda não houve mãos a medir. “Este ano, o número de pessoas apoiadas por nós cresceu imenso. Foi o efeito da pandemia”, a juntar-se ao aumento de refugiados apoiados “com um grande número de famílias afegãs a tornarem-se beneficiárias” pela via da PAR, informa Teresa.



Roupa no talho, sapatos na peixaria e uma missão social em mãos


“A ideia aqui é que as pessoas [em situação de pobreza] venham buscar as coisas como se fossem a uma loja normal. É muito diferente vir aqui, olhar para uma montra e ir buscar o que se precisa do que receber coisas de um caixote”, diz Rita.


Onde antes se via peixe fresco em exposição matutina, na bancada central do mercado, veem-se agora fileiras de sapatos de bebé; no pequeno talho adjacente, onde antes se assistia ao espetáculo de um cutelo a descer veloz para cortar a carne, veem-se agora roupas em segunda mão, cuidadosamente expostas na montra com a ajuda de cabides e manequins iluminados por uma luz amarelada.


“Quando as pessoas entram numa espiral de pobreza, torna-se difícil arranjar coisas específicas”, que associações regulares não conseguem fornecer, acrescenta Rita. “Arranjar os dentes, comprar um medicamento. Já aconteceu nós conseguirmos arranjar essas coisas para pessoas individuais”, por causa da proximidade do apoio.



Uma das voluntárias lembra a história de uma jovem de uma casa de acolhimento que encontrou aqui, para o baile de finalistas, um vestido que nunca poderia comprar. Fotos: Rita Ansone.



Rita recorda o dia em que uma rapariga da Casa da Estrela, uma casa de acolhimento para raparigas até aos 18 anos, passou pela Dona Ajuda à procura de um vestido para o seu baile de finalistas. Achou um vestido praticamente novo na loja. “Foi olhar para ela com um vestido deslumbrante e ver: está fabulosa. É super gratificante ver as pessoas poderem ter acesso a coisas que de outra forma nunca poderiam ter.”


Quem mais precisa pode simplesmente vir ao mercado buscar o que necessita ou contribuir com um valor simbólico. Na loja da Dona Ajuda, dar é mais do que “despejar” o que já não se usa. É um ato consciente para combater a desigualdade. Mas também para evitar o desperdício: “Qualquer pessoa pode vir comprar e com isso está a ajudar alguém.”


Como que a confirmá-lo, entram duas jovens raparigas pela loja, explorando o espaço com passo tranquilo. Cada vez são mais os jovens que aderem a este tipo de comércio, garantem os voluntários. Dirigem-se à segunda nave do mercado, recém-ocupada pela Dona Ajuda e rebatizada de P.R.A.Ç.A, atraídos pelos livros e discos que a preenchem, e abeiram-se dos cubículos, semelhantes a pequenas garagens, do espaço contíguo, em busca de um achado (ou uma boa pechincha).


No final, o dinheiro que se conseguir juntar com as vendas reverte para pessoas individuais na comunidade, carenciadas e sinalizadas, ou para associações, explica Rita. O objetivo é conseguido através de uma lógica de economia circular: nenhum objeto se perde e as trocas ocorrem entre pessoas, sem outro intermediário que não os voluntários que orientam o espaço.




Do Rato para Lisboa, a “boa vizinhança” é contagiosa


Mas a vida por aqui nem sempre foi assim tão pulsante. O Mercado do Rato, fundado em 1927, vinha sendo desde há muitos anos um dos mais esquecidos e deteriorados da cidade. Supermercados e o plano pendente de construção de um parque de estacionamento arrasaram o comércio tradicional na zona. Pouco a pouco, os habitantes originais do mercado foram saindo e o espaço deixado praticamente ao abandono (com exceção dos dois restaurantes).



Tudo mudou em 2015, com a movimentação de alguns vizinhos, que, mais tarde, vieram a formar a Dona Ajuda. Teresa Cancela, atual presidente da associação, recorda estes primeiros tempos com carinho. Era então era moradora e voluntária. “Na altura, isto vivia do apoio de amigos e dos seus eventos”, não havia espaço assegurado.


A associação começou por ser a obra de um grupo de vizinhos da Freguesia de Santo António: a IPSS Boa Vizinhança. Faziam ações para a comunidade local, desenvolviam iniciativas — como o cartão de vizinhos, com direito a descontos na farmácia local do bairro para quem precisava, que deu os primeiros passos para as trocas e doações entre vizinhos — e organizavam eventos locais.


Depois, o espaço da loja social foi cedido por um privado — a EMEL, que tinha o plano do parque de estacionamento em mãos —, por via de um acordo com a Câmara Municipal e rapidamente o projeto escalou.


O Lar Jorbalán, que acolhe jovens mulheres PALOP em situação de vulnerabilidade social, sobretudo mães solteiras, foi o primeiro beneficiário da Dona Ajuda. Seguiram-se outros, como a Casa da Estrela e a associação Reto à Esperança. Já não era mais um projeto hiperlocal, mas de e para lisboetas, ligado a várias associações da cidade.



O espaço tem sido a grande luta


No primeiro semestre de 2021, a Câmara permitiu, após vários pedidos, a cedência do espaço da segunda nave do mercado. E os voluntários, já muitos mais do que os iniciais, pegaram em tintas e pincéis para recuperar a segunda nave, que a equipa da Dona Ajuda há muito andava a namorar.


“As pessoas da triagem andaram de trincha na mão e touca na cabeça a arranjar a segunda nave”, relembra Hélio Mateus, também ele voluntário da Dona Ajuda. Fizeram-no em parceria com a associação irmã, Pousio, de arte e cultura, de que Hélio também faz parte. E chamaram ao espaço remodelado “P.R.A.Ç.A.”, a evocar o velho mercado.

O gesto foi uma repetição de 2015. “[O Mercado do Rato] estava a cair aos bocados, o teto esburacado aqui”, lembra Teresa, apontando com o dedo para o alto. “Aqui caía cal. Mas foi ótimo fazer este trabalho, divertimo-nos no processo.”


esa, apontando com o dedo para o alto. “Aqui caía cal. Mas foi ótimo fazer este trabalho, divertimo-nos no processo.”

“O espaço [tem sido] a grande luta para conseguirmos pôr todas as ideias cá dentro”, confessa Hélio. Ideias não faltam e, havendo espaço, há forma de as concretizar.

“Esta é a minha ambição pessoal: garantir o espaço para nós, para que tudo fique bem para quem vier a seguir”, confessa Teresa. “A minha vigência [como presidente] termina em dezembro e quero que quem vier – os jovens! – tenham condições. Eu fico como voluntária, na retaguarda. Enquanto tiver saúde!”


Com a segunda nave do mercado remodelada e em funcionamento desde maio do ano passado, parece que, para já, o combate foi para intervalo.



Cultura na Praça, fruta no cesto


É terça-feira, depois de almoço, 15 horas. Terminada a refeição, dita o costume que é hora de comer fruta; coincidência feliz para quem acaba de entrar na Praça, onde, todas as terças-feiras, o Mercado do Rato faz uma viagem ao passado, voltando a encher-se de frutas e legumes.


Hélio faz o trajeto de uns míseros passos entre a loja social e a Praça. Entra pela porta envidraçada aberta, mas deve ter cuidado onde coloca os pés. Quatro filas de caixas de madeira, dezenas delas, dispostas geometricamente, forram o chão. Vão se enchendo, aos poucos, de frutas coloridas — apelidadas de feias, mas o nome dá azo a engano —, um sortido variado em padrão repetido, à medida que três jovens se baixam e levantam, uma e outra vez, para as pousar nos caixotes.


A Fruta Feia também é, de há uns tempos para cá, parceira da Dona Ajuda. Trata-se de uma cooperativa de consumo, que visa combater o desperdício alimentar, através da veiculação e venda de fruta “menos estética” aos consumidores da rede.



A cooperativa Fruta Feia, que visa combater o desperdício alimentar, é uma das parceiras da Dona Ajuda e de certa forma devolve ao mercado o ambiente de mercado. Fotos: Rita Ansone


“A relação [da Dona Ajuda com a fruta feia] é muito interessante, porque além de reavivar o mercado, de o fazer regressar ao seu propósito original, chama as pessoas do meio ‘sustentável’ e ‘alternativo’, que se juntam ao nosso público”, afirma Hélio. Rita, que entretanto chegou, depois de se ausentar para trabalho na loja, concorda: a “malta” da fruta feia traz gente diferente ao espaço, e trazem sempre “as suas tampinhas, para a recolha.”


E, nos outros dias da semana, o que há na Praça? Juntas, a Dona Ajuda e a Pousio partilham o espaço da segunda nave do mercado, composto por várias lojinhas com portas de correr verdes, semelhantes a mini-garagens, e um azulejo com um número em cima de cada uma. Aqui, as zonas de exposição de livros, discos, filmes e CDs da Dona Ajuda, cruzam-se com os espaços de produção artística da Pousio.


Um dos objetivos da associação irmã, gerida por artistas e trabalhadores da cultura (de que Hélio é exemplo), é precisamente este cruzamento: juntar ação cultural com ação social. Aproximá-la das pessoas. Quase “artivismo”.


No velho Mercado do Rato, a Pousio mantém um programa de residências artísticas, a que algumas das “lojinhas” da Praça dão abrigo. Atualmente, são quatro os artistas residentes. Por vezes, organizam-se aqui eventos culturais: uma programação ativa, com atores convidados.


O efeito é de contágio, e de entre os atributos da Dona Ajuda, a “parte dos livros” é aquela que tem mais voluntários, garante Hélio. São também dos grupos mais novos da equipa, com muitos estudantes universitários à mistura. “Se [alguém em conversa] chega e diz que tem lá em casa umas coisas para doar, o mais provável é serem livros!”, brinca Hélio, afastando-se das caixas de fruta para apontar para uma das lojinhas onde há prateleiras a rebentar de livros.


A função ambiental, com zero desperdício, é para cumprir até ao fim, e aqueles livros que mais dificilmente serão vendidos – sejam sobre santinhos de devoção ou a biografia de uma Irmã pouco lembrada – são dados a uma paróquia local. Nem os estragados ficam para o gasto, garante Hélio: são reencaminhados para o Banco Alimentar, que recicla o papel.



“Queríamos ser como o calão de rua, quando dizem que o jogo deu uma reviravolta”


A unir estes vários mundos e projetos, há um conceito fundamental: a economia circular, concretizada no projeto Reviravolta, elaborado por alguns dos voluntários da Dona Ajuda e Pousio, que foi um dos vencedores do Lisboa Participa 2021, o Orçamento Participativo (OP) da cidade.


Num cantinho da Praça, uma porta diferente das das outras lojinhas dá para um pequeno escritório improvisado, onde Hélio se senta numa secretária. Na parede oposta está afixado em papel o plano em excel do projeto. Afinal, do que se trata?


“O [projeto vencedor do OP] é como um spin-off da Dona Ajuda, com os valores ambientais e de economia circular que nós já temos”, diz Hélio. O objetivo é diminuir os resíduos que são produzidos e aumentar o valor de objetos em segunda mão, que podem parecer inúteis, mas são, na verdade, valiosos.



|Fonte: A Mensagem , 27 de Abril 2022

 
 

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