Todos os anos, milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados, tantos que as Nações Unidas têm insistido no combate contra esta situação. Em Portugal, o movimento Unidos Contra o Desperdício quer pôr tanto as empresas como os cidadãos a lutarem contra esta perda, que tem um impacto não só no ambiente, mas também na carteira.
Todos os anos, um terço dos alimentos produzidos acabam por ser desperdiçados, prejudicando o ambiente, a sociedade e as economias. Este é “um problema de todos”, e, por isso, a solução tem de “partir de todos”, defende o Unidos Contra o Desperdício, movimento que procura unir os portugueses e as empresas nacionais nesta luta.
Em entrevista telefónica, Francisco Mello e Castro, coordenador executivo do movimento, conta como surgiu esta iniciativa, mas também explica porque é que é tão relevante que o esforço nem fique somente nas mãos dos cidadãos, nem apenas das empresas. E adianta que múltiplos e nefastos efeitos têm as perdas alimentares, que, ano após ano, se vêm repetindo.
Gerador (G.) – O que é e quando surgiu o movimento Unidos Contra o Desperdício?
Francisco Mello e Castro (F. M. C.) – O movimento Unidos Contra o Desperdício nasceu no dia 29 de setembro de 2020. Nesse ano, pela primeira vez, foi designado pelas Nações Unidas o Dia Mundial do Combate ao Desperdício Alimentar. O movimento nasceu em Portugal, impulsionado por Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, à qual se juntaram oito entidades, nomeadamente a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), a Associação Portuguesa de Logística (APLOG) e a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP). [Unimos] uma série de entidades que, de certa forma, representam os vários setores da cadeia alimentar, porque queríamos ser suficientemente abrangentes para ser o “guarda-chuva” do desperdício alimentar em Portugal.
G. – E qual é a missão do movimento?
F. M. C. – O objetivo é comunicar e sensibilizar os portugueses para a importância de combatermos o desperdício e para o facto de termos de estar todos unidos nesta batalha. Temos uma união forte dos muitos que querem acabar com este problema.
G. – Dizem que são um movimento educativo. Que peso tem a educação na luta contra o desperdício?
F. M. C. – A educação é o ponto de partida. O desperdício alimentar é, muitas vezes, um problema escondido. As pessoas não têm noção da sua dimensão. Portanto, [é preciso] dar aos portugueses a informação, primeiro, de que o desperdício alimentar existe e tem dimensões avassaladoras, e, depois, de que é simples de resolver. Nenhum de nós precisa de ser um cientista da NASA para conseguir combater este problema.
G. – A resolução do desperdício alimentar é simples?
F. M. C. – Em boa parte, é. Promovemos uma campanha, que fazia uma provocação até às gerações mais novas, que estão muito preocupadas com a pegada ecológica e com as emissões de CO2, e que não têm noção da dimensão do [peso do] desperdício alimentar nessas temáticas. A campanha teve três motes. Uma delas era “antes de evitar andar de avião, faz um empadão”. O desperdício alimentar polui quatro vezes mais do que todos os voos de passageiros. Depois, tínhamos outro mote que era “ou fazemos croquetes ou estamos fritos”, porque o desperdício alimentar equivale a um quarto das emissões de CO2 de todos os veículos no mundo. Tivemos ainda outro mote que foi “salvar o planeta uma açorda de cada vez”, porque o desperdício alimentar emite três vezes mais CO2 do que a extração de petróleo. A campanha serviu para explicar que, através de uma açorda, de um empadão ou de um simples croquete, podemos estar a fazer a nossa parte na resolução de um problema que tem dimensões enormes, em termos de pegada ecológica, para não falar nos outros impactos que o desperdício alimentar tem. Infelizmente, o primeiro impacto do desperdício alimentar é social. Temos cerca de 800 milhões de pessoas no mundo que não têm acesso a bens alimentares e passam fome, mas ao mesmo tempo temos um terço dos alimentos produzidos no mundo a serem desperdiçados, o que se estima que daria para alimentar 1,3 mil milhões de pessoas, ou seja, daria para alimentar mais do que essas pessoas que passam fome. Há um desequilíbrio e uma injustiça social. E, depois, o desperdício alimentar também tem um impacto económico.
G. – Mas acredita que o desperdício pode ser combatido, com resultados expressivos, a nível individual ou o verdadeiro impacto seria uma consequência de decisões de empresas, num nível mais macro?
F. M. C. – [O combate] tem de ser feito em todas as frentes. Hoje, estima-se que as nossas casas são responsáveis por mais de 50 % do desperdício. O combate tem de ser feito, cada vez mais, junto dos portugueses, a nível individual, porque é aí que está o problema, segundo as estatísticas.
G. – Disse que a educação é central na luta contra o desperdício. Que avaliação faz da presença desta temática nas escolas?
F. M. C. – Nesse ponto, o movimento ainda está um passo atrás. Ainda não conseguimos chegar ainda a esse domínio, que é essencial. Temos de estar nas escolas. Viu-se bem na promoção dos ecopontos a velocidade com que os miúdos chegavam a casa e eram autênticos polícias sinaleiros dos pais. Precisamos mesmo de conseguir chegar com esta temática às escolas.
G. – Unem empresas de diversos setores, da Sagres ao Celeiro. Que nota dá ao esforço que as empresas portuguesas têm feito para evitar o desperdício?
F. M. C. – Vemos coisas muito interessantes e inovadoras. Há um esforço efetivo das empresas para tentarem fazer alguma mudança. Temos marcas que têm exemplos concretos, desde o bolo de banana feito com as bananas maduras que não foram vendidas até aos iogurtes que têm um novo prazo de validade, que permite à pessoa tomar a decisão de deitar fora ou não.
G. – Há várias iniciativas que tentam reaproveitar os excedentes ou os materiais que seriam considerados lixo, mas parecem ser ainda insuficientes. O que falta para que esta dinâmica seja mais alargada?
F. M. C. – Depende dos produtos. Há produtos que são mais delicados do que outros, nomeadamente os frescos. Nesse caso, não há legislação, por questões de segurança alimentar, que permita às empresas atuarem ou transformarem os produtos.
G. – Então, a legislação e o enquadramento de apoios, como estão, favorecem o combate ao desperdício ou pouco suporte dão a essa causa?
F. M. C. – Hoje a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica] já é uma grande embaixadora do combate ao desperdício, e tem feito esforços no sentido da flexibilização, ou seja, dentro daquilo que a lei, há uma tentativa de flexibilizar as relações, permitindo, por exemplo, às empresas que doem as sobras, que há uns tempos seria impensável doarem. Acho que a legislação está a caminhar no bom sentido. É um processo.
G. – Por exemplo, há várias iniciativas que reaproveitam fruta e vegetais que não encaixam nos padrões dos supermercados. Faz sentido ter ainda estes padrões?
F. M. C. – Aí aponto o dedo também a nós próprios, consumidores. Esses padrões foram estabelecidos com base naquilo que é o padrão de consumo. No supermercado, a maior parte das pessoas, perante um tabuleiro de maçãs, vai escolher as mais bonitas e formosas. Também temos este desafio.
G. – Vive-se um período de inflação. O aumento dos preços está a levar as pessoas a serem mais conscientes do desperdício que produzem?
F. M. C. – Sem dúvida. As pessoas estão a passar um momento mais difícil, em que os preços dos produtos dispararam e há um decréscimo do poder de compra. O combate ao desperdício pode não ser consciente, mas, na prática, as pessoas são obrigadas a isso.
G. – E, do lado das empresas, que papel pode ter o combate ao desperdício alimentar no reforço da sua competitividade?
F. M. C. – [Um papel] enorme. As empresas são as primeiras a dar importância ao impacto económico que o desperdício alimentar tem. Uma empresa que produz salsichas, batatas fritas ou o que seja, se tiver um desperdício muito grande, tem um problema e tem de tentar tornar o processo mais eficiente, ou estará a perder dinheiro.
G. – O terceiro pilar do combate contra o desperdício é o impacto social. Que papel podem ter os bancos alimentares nessa cadeia?
F. M. C. – Os bancos alimentares são hoje responsáveis por alimentar cerca de 400 mil pessoas de forma regular. Se essas pessoas não tivessem apoio, teriam carências alimentares. Do ponto de vista social, o banco alimentar é um perfeito exemplo daquilo que é, por um lado, a responsabilidade de não deixar ninguém passar fome e, por outro, a economia circular, porque uma grande parte dos produtos que o banco alimentar recebe provavelmente seriam desperdiçados e destruídos. O banco alimentar não só mata a fome a muita gente como reaproveita alimentos em perfeitas condições de consumo, que seriam, se assim não fosse, destruídos.
G. – Já têm mais de dois mil cidadãos associados e centenas de empresas aderentes. Quais os próximos passos para o Unidos contra o Desperdício?
F. M. C. – Continuar a sensibilizar os portugueses, porque é preciso chegar a muita gente e repetir várias vezes a mesma mensagem. Chegar às escolas é também um passo muito importante.
|Fonte: Gerador, 12 de Dezembro 2022
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